O Jogo Marcado: Por Que Nossas Regras de Energia Não Nos Protegem?

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Data: terça-feira, 30 de setembro de 2025

Categoria: Sustentabilidade e Meio Ambiente

Autor: Newsun Energy Group

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O Jogo Marcado: Por Que Nossas Regras de Energia Não Nos Protegem?

 Imagine que você está assistindo a uma partida de futebol. As regras são claras: dos onze jogadores, só o goleiro pode usar as mãos, a falta deve ser marcada e o gol só vale se a bola cruzar a linha. Agora, imagine que o juiz é primo do centroavante de um dos times. Imagine que os donos dos times têm o poder de mudar a regra no meio do jogo se ela não os favorecer. E imagine que, quando um time é multado por indisciplina, a multa é tão pequena que vale mais a pena ser indisciplinado do que jogar limpo. O jogo ainda tem regras, mas ele deixou de ser justo. O resultado se torna previsível, e quem perde, invariavelmente, é o torcedor que pagou o ingresso.

Essa analogia, infelizmente, descreve com precisão a sensação que nós, consumidores de energia no Brasil, temos todos os meses ao pagar a conta de luz. Nós reconhecemos a necessidade de regras para o setor elétrico, mesmo um manual complexo para garantir que a energia chegue às nossas casas com segurança, qualidade e a um preço justo. Temos a ANEEL, nosso "juiz" regulador. Temos leis e decretos. No papel, o sistema é uma obra de engenharia regulatória. Na prática, sentimos que estamos perdendo um jogo de cartas marcadas.

Então, por que o sistema, mesmo com um livro de regras debaixo do braço, não funciona como deveria? A resposta não está na ausência de normas, mas na forma como elas são distorcidas, ignoradas ou contornadas por forças muito mais poderosas do que o interesse do consumidor comum.

 

1. O Maestro Político e a Orquestra Desafinada

O primeiro e talvez mais corrosivo problema é a interferência política. O setor elétrico deveria ser conduzido por uma lógica técnica e de longo prazo. A construção de uma usina, o reforço de uma linha de transmissão ou a decisão sobre qual fonte de energia incentivar são projetos que levam décadas para maturar e cujos efeitos perduram por gerações.

Nosso sistema político, no entanto, opera em ciclos de quatro anos. O horizonte do governante raramente ultrapassa a próxima eleição. E é aí que a partitura técnica é rasgada para dar lugar à improvisação populista. Vemos isso de forma clara na manipulação das tarifas. Anos atrás, o governo decidiu, por decreto, forçar uma redução na conta de luz. Parecia uma ótima notícia, um presente para o povo. Mas não era. Foi como tampar uma panela de pressão fervendo. A conta, represada artificialmente, explodiu alguns anos depois no que ficou conhecido como "tarifaço", um reajuste brutal que pegou todos de surpresa e desorganizou o orçamento de milhões de famílias e empresas.

As regras diziam que os custos deveriam ser repassados de forma transparente. A política disse "não agora". O resultado foi um caos financeiro que exigiu empréstimos bilionários para salvar as distribuidoras, empréstimos esses que, claro, nós estamos pagando até hoje com juros embutidos na tarifa.

Além disso, os cargos de liderança nas agências reguladoras e empresas estatais do setor frequentemente se tornam moeda de troca política. Em vez de nomear o técnico mais qualificado, nomeia-se o aliado político. O "juiz" do nosso jogo passa a ter que responder diretamente ao interesse de um dos times e sua independência, pilar fundamental de qualquer regulação séria, fica irremediavelmente comprometida. A bússola que deveria apontar para o bem-estar da sociedade passa a apontar para os interesses do palácio do governo.

 

2. O Dono da Bola: Lobbies e a Captura Regulatória

Se a política interfere "de cima para baixo", os grandes grupos de interesse econômico pressionam "pelos lados". Geradoras, transmissoras e distribuidoras são empresas gigantescas, com lucros bilionários. Elas possuem exércitos de advogados, consultores e lobistas cuja única função é garantir que as regras do jogo sempre os favoreçam.

Isso leva a um fenômeno conhecido como "captura regulatória". Em termos simples, o regulador (ANEEL), que foi criado para fiscalizar e controlar o setor em nome da sociedade, acaba se tornando tão próximo das empresas que regula que passa a defender os interesses delas e não os nossos.

Como isso acontece na prática? Através da influência na criação de novas regras. Um exemplo: quando se discute como remunerar um novo tipo de usina, digamos, uma termelétrica a gás. O lobby das empresas de gás vai argumentar que elas precisam de contratos longos e caros para garantir a "segurança" do sistema. Eles apresentarão estudos complexos, participarão de todas as audiências públicas e pressionarão parlamentares. Nós, consumidores, estamos ocupados trabalhando e tentando pagar as contas. E não temos o conhecimento técnico indispensável para participar ativamente deste processo. Quem tem mais voz nesse cenário?

O resultado é que muitas vezes vemos a aprovação de regras que garantem lucros exorbitantes para certos segmentos, sob o pretexto de necessidade técnica. Contratamos energia de termelétricas caríssimas e poluentes que ficam ligadas mesmo quando temos água nos reservatórios e sol abundante, simplesmente porque seus contratos garantem que elas sejam pagas, usadas ou não. A regra existe, o contrato é legal, mas o resultado é uma conta de luz mais cara e um sistema menos eficiente. Perdemos nós e perde o meio ambiente.

 

3. O Voo de Galinha: A Crise do Planejamento a Longo Prazo

Outro defeito crônico é a nossa incapacidade de planejar para o futuro. O Brasil sofre de um "imediatismo" patológico. Agimos apenas quando a crise bate à porta. Nossa matriz energética, altamente dependente de hidrelétricas, é um exemplo clássico. Sabemos há décadas que as mudanças climáticas trariam secas mais severas e frequentes. A lógica mandaria diversificar a matriz de forma planejada, investindo pesadamente em eólica, solar e biomassa para reduzir nossa dependência de São Pedro.

O que fizemos? Esperamos a crise hídrica de 2021, com os reservatórios em níveis alarmantes, para sair correndo e ligar todas as termelétricas possíveis, a um custo astronômico. Foi o equivalente a chamar o carro de aplicativo na tarifa dinâmica mais cara da história. A regra da "bandeira tarifária" funcionou – ela repassou o custo para nós. Mas a regra fundamental, a de planejamento para evitar a crise, falhou miseravelmente.

Esse "voo de galinha" – planejamento curto, reativo e ineficiente – é a marca do nosso setor. Projetos de transmissão que levariam energia barata do Nordeste para o Sudeste atrasam anos por questões burocráticas e falta de vontade política. A expansão da rede não acompanha o crescimento da geração renovável, e vemos o cúmulo do desperdício: parques eólicos e solares prontos, mas sem ter como escoar sua energia para o sistema. É como construir uma fazenda modelo e não ter estrada para levar a colheita.

 

4. Fiscalização de Papel e a Sensação de Impunidade

De que adianta uma lei de trânsito se não há fiscalização nas ruas? No setor elétrico, a sensação é parecida. As distribuidoras, por exemplo, têm metas de qualidade a cumprir, como limites para a duração e frequência das interrupções de energia. Quando não cumprem, deveriam ser multadas.

As multas existem, mas muitas vezes não parecem ser suficientes para forçar uma mudança de comportamento. Para uma empresa que fatura bilhões, uma multa de alguns milhões pode ser apenas "custo operacional", mais barato do que investir pesado na modernização da rede em áreas remotas. Além disso, as empresas recorrem judicialmente, e o processo se arrasta por anos.

Para o consumidor na ponta, a frustração é concreta. Quando ficamos horas sem energia, perdemos alimentos na geladeira ou temos um aparelho eletrônico queimado, o caminho para o ressarcimento é um labirinto burocrático. A regra que nos dá esse direito existe, mas o esforço para exercê-la é tão grande que muitos desistem. Sentimos que a regra protege a empresa, que pode seguir um protocolo lento e complexo, mas não protege nossa necessidade imediata.

 

Conclusão: O Descompasso Entre o Legal e o Justo

O grande problema do sistema elétrico brasileiro não é a falta de um manual, mas a falta de um compromisso real com os princípios que o originaram. O manual foi escrito, mas os jogadores mais poderosos aprenderam a ignorar as páginas que não lhes interessam, enquanto o juiz muitas vezes apita a favor da casa.

Nossa conta de luz não é cara apenas pelo custo de gerar e transportar elétrons. Ela é cara porque embutido nela está o "Custo Brasil" da energia: o custo da ineficiência, do planejamento reativo, das decisões políticas equivocadas, dos lucros garantidos por lobby e da fiscalização que não intimida. Pagamos pela energia que consumimos e, de quebra, pela disfuncionalidade de todo o sistema.

O caminho para a mudança não é rasgar o livro de regras, mas sim lutar para que ele seja cumprido em sua essência. Exigir transparência, cobrar por nomeações técnicas, pressionar contra privilégios e fazer barulho quando o serviço é ruim. Precisamos entender que, enquanto o jogo continuar sendo jogado com cartas marcadas, o placar final será sempre o mesmo: nosso bolso vazio e a sensação amarga de que, mais uma vez, fomos feitos de bobos. A regra existe para todos, mas no Brasil, parece que alguns são mais "todos" do que outros.